No ano de 2006, comemora-se o quinto centenário de nascimento de são Francisco Xavier, um dos primeiros padres da Companhia de Jesus. Nascido em 1506, Francisco Xavier, companheiro de Inácio de Loyola, foi um missionário e apóstolo das índias, um dos pioneiros e co-fundador da Companhia de Jesus. Morreu na China, em 1552, onde se preparava para evangelizar essa vasta região. Foi canonizado pelo Papa Urbano VIII.
O jesuíta espanhol Pedro Miguel Lamet lançou em março deste ano o livro El aventurero de Diós, que conta a história de são Francisco Xavier. A novela histórica, como é classificada a obra, foi publicada pela editora La Esfera de los Libros, de Madrid, e já está na 2ª edição. Em preparação ao Seminário A globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos, que acontecerá de 25 a 28 de setembro na Unisinos, a IHU On-Line entrevistou Pedro Lamet, por e-mail, sobre a obra que fala de Francisco Xavier.
Pedro Miguel Lamet, poeta, escritor e jornalista ingressou na Companhia de Jesus, em 1958. É licenciado em Filosofia, Teologia e Ciências da Informação e formado em Cinematografia. Posteriormente, foi professor de Estética e Teoria do Cinema nas Universidades de Valladolid, Deusto e Caracas, sem nunca abandonar a crítica literária e cinematográfica.
Trabalhou em diversos veículos midiáticos, como a revista Cinestudio, diário Pueblo de Madrid, semanário Vida Nueva, semanário El Globo e o diário El País.
Atualmente, é diretor da revista bimestral de desenvolvimento pessoal A vivir. Como escritor, publicou poesia, ensaio, biografias, crítica literária e cinematográfica. Além da biografia que é tema da entrevista que segue, Lamet escreveu vários livros entre os quais: Arrupe, una explosión en la Iglesia. Madri: Editora Temas de Hoy, 1989. A nona edição foi publicada com o título: Arrupe, un profeta para el siglo XXI, Madri: Editora Temas de Hoy, 2001, Juan Pablo II, Hombre y Papa (1995-2005), Un jesuita sin papeles (2005), sobre José María Díez-Alegría. Também publicou a novela histórica El caballero de las dos banderas: Ignacio de Loyola (2000).
IHU On-Line - O que a obra "El aventurero de Diós" passa de mais importante?
Pedro Lamet - Lida como obra do século XXI, ela transmite uma façanha que hoje chamaríamos "globalizante" e inconcebível para o século XVI, quando, com as limitações das comunicações daquele tempo, o mundo começou a ficar pequeno. A cada três dias de sua vida, um deles, Francisco Xavier passou navegando. Percorreu 80 mil quilômetros, o equivalente a duas voltas ao mundo. Suas 137 cartas, escritas em pobres cabanas, transformaram-se em crônicas vivas de um mundo de sonhos, o desconhecido Oriente, que se devoravam nas universidades e cortes européias.
Colocou-se em questão seu diálogo intercultural, tío em voga hoje, com aqueles mundos recém-descobertos para os europeus. É certo que Xavier tinha pressa, não só por sua dupla identidade de atleta e apaixonado, mas porque lhe urgiam as ordens do Papa em sua missão de núncio. Além disso, ele tinha uma concepção teológica da salvação, própria da época, e uma certa obsessão com o inferno, mais evidente, por exemplo, que em Inácio de Loyola ou Pedro Fabro. Mas também é certo que ele experimentou interiormente uma forte evolução ao chegar ao JaPão. Se ele somente alcançou a descoberta da sabedoria mística da índia, seus primeiros fracassos no país do Sol Nascente fizeram-no evoluir.
"Padre mestre Francisco - disse um contemporâneo seu - se na índia pescava com rede, no JaPão aprendeu a pescar com caniço", ou seja, aprendeu a dialogar com os monges zen sobre o sentido da vida, o problema do mal e a lei natural, a deixar por escrito suas perguntas e respostas e a enamorar-se rendidamente pelo nível intelectual e por muitos costumes e descobertas dos japoneses, até trocar sua própria vestimenta e o seu austero estilo ascético para poder entrar em diálogo com eles.
No entanto, sem dúvida, o mais importante era o seu motor interior, a espiritualidade do magis inaciano, um "mais, mais e mais" que o empurrava para frente e o unia misticamente com Deus.
IHU On-Line - Como o senhor define a personalidade de Francisco Xavier? Por que ele era um aventureiro de Deus?
Pedro Lamet - Alto e bem formado, tinha mais o ar de um galí de corte que de um clérigo. Parecia um bom ginete, um cavaleiro de armas, mais do que um mestre em Artes. Seu nariz perfeito estava no meio de um rosto com boa cor, que era emoldurado por um cabelo e barba de azeviche. Era uma dessas pessoas que, somente ao olhar, transmitem confiança e alegria. Impressionavam, sobretudo, seus olhos brilhantes e entusiastas que penetravam nas pessoas e pareciam dizer aos que o olhavam: viver vale a pena, viver é aventurar-se, é querer aos demais, é sonhar.
Muito diferente e até oposto em alguns aspectos a Inácio de Loyola - que era mais introspectivo, mais psicólogo, mais condutor de almas - Xavier era um homem de ação, franco, direto, mas também com traços típicos de uma pessoa que reflete. Isso era fruto, sobretudo, do exercício que Santo Inácio chama "refletir sobre si mesmo", próprio da grande escola psicológica e espiritual dos Exercícios Espirituais, que Xavier praticou tío a fundo nos tempos de sua conversão, na Universidade de Paris. Era uma mistura, portanto, de simpatia e de fortaleza; magnetismo pessoal e temperamento forte; afetividade e exigência com ele mesmo, radicalismo evangélico e caridade sem limites aos fracos.
IHU On-Line - Qual sua maior contribuição para a fé cristí no Oriente?
Pedro Lamet - Sem dúvida, o diálogo intercultural, sobretudo, em sua segunda etapa no JaPão, onde teve que se inter-relacionar "pessoa a pessoa". Parece curioso que Lacouture, (tratas-se de Jean Lacouture, autor da obra, em dois volumes Jésuites. Volume 1: Les Conquérants - 1991e Volume 2: Les Revenants -1992 - Nota da IHU On-Line) escritor e jornalista leigo francês, em sua famosa obra Jésuites o considere um precursor de Nobile e Ricci, no esforço que caracterizaria no futuro a Companhia de Jesus, de reler o cristianismo de outras culturas, e que o padre Pedro Arrupe redefiniu com o eloqüente termo de inculturação. Também seu zelo ardente de evangelizador criou as primeiras comunidades cristís, algumas das quais viveram de forma autônoma, inclusive sem sacerdotes em relação à perseguição. Xavier regenerou o estilo missioneiro evangélico por sua atenção preferente aos mais pobres e esquecidos e, ao mesmo tempo, por seu humanismo e simpatia no trato com os soldados e famílias. Ele foi a primeira ponte cultural Oriente-Ocidente graças à sua interessante correspondência.
IHU On-Line - Como a história de Francisco Xavier se entrelaça com a história de Inácio de Loyola?
Pedro Lamet - Esse é um exemplo de como a fé e a amizade autênticas são capazes de passar por cima dos interesses e partidarismos políticos. Xavier arranca tudo das profundas mudanças que se produziram em seu castelo e sua família, quando a guerra do reino de Navarra, que se ergueu contra o de Castilla, em favor de Enrique II dAlbret, converte a fortaleza em uma estratégica emboscada de interesses políticos entre França e Espanha. Tanto que seus irmãos Miguel e Juan intervêm na tomada de Pamplona, onde em 1521 cai gravemente ferido de bala de canhío um tal de íí±igo de Loyola, cavalheiro vaidoso e mulherengo, que, graças àquela ferida, descobriria os sabores secretos da alma, o discernimento interior, e se converteria em pobre peregrino e fundador da Companhia de Jesus. Xavier só tinha 11 anos quando, muito triste, assistiu à demolição das torres de sua fortaleza e a usurpação de suas terras pelas tropas punitivas do regente cardeal Cisneros. Mesmo que Carlos V devolvesse a Navarra privilégios, direitos e honras, já não seria a mesma coisa. Don Juan, pai de Xavier, morreria de desgosto, e a sua míe passou a ser chamada desde então "a dama triste". É de imaginar o forte repúdio que sentiria Francisco em relação a Inácio ao se encontrarem na Universidade de Paris e a dificuldade que teve o segundo para converter o primeiro. "A mais dura pasta que me custou moldar", dizia de Xavier "o peregrino" Inácio.
Mas dali nasceu uma amizade profunda. Inácio nomeou-o primeiro secretário da Companhia de Jesus, cargo que teve que deixar quando Portugal pediu missionários. A maior alegria para Xavier no Oriente era receber cartas de Inácio, a quem escrevia de joelhos e cuja assinatura recortada levava pendurada no pescoço em um relicário, com a dos outros companheiros. Inácio pensou que Xavier o sucederia à frente da Companhia, mas a carta em que lhe indicava que voltasse chegou ao Oriente quando Xavier já havia morrido.
IHU On-Line - Qual a contribuição dos Exercícios Espirituais para a virada na vida de Xavier?
Pedro Lamet - Inácio começou a convencê-lo pouco a pouco. Primeiro, por meio de seu companheiro de quarto, o doce Fabro. Depois, diríamos que "muito jesuiticamente", se nos permite o salto anacrônico, ajudando-o economicamente quando não recebia dinheiro de sua família. Entretanto, a grande decisão foi a prática dos Exercícios. Xavier os fez assim como ele era, de forma apaixonada e extremosa. Até o ponto que com cordas amarrou seu corpo, do qual estava tío ufano, tío fortemente, que teve que chamar um cirurgiío para separar as cordas. Dos Exercícios e da identificação com Cristo tirou o "mais", a uniío mística com Deus, o esquecimento de si mesmo e o ímpeto evangelizador.
IHU On-Line - O que marcou a viagem de Xavier à índia?
Pedro Lamet - Seu batizado no mar foi um verdadeiro noviciado como missionário. Demorou um ano e um mês para chegar a Goa, passando por calmarias enervantes, como a de Guiné, tempestades de vida ou morte, como a de Cabo de Boa Esperança, e enfermidades como a de Moçambique, a qual costumava chamar "o cemitério dos portugueses". Foi um tempo que viveu como servidor de todos. Os perigos do mar marcariam os onze anos de missão de Xavier. Depois, na índia, ele não chegou a captar completamente a riqueza espiritual do hinduísmo, talvez porque em um primeiro momento sua relação com esta religiío foi superficial e tratava, salvo alguma exceção, com pobres e incultos.
IHU On-Line - Quais as principais características das cartas que Xavier escrevia para seus colegas jesuítas na Europa?
Pedro Lamet - Eram cartas escritas em condições extremas, em um bom castelhano e outras em português, em que se refletia primeiro a fé e a espiritualidade cristí do correspondente, mas também o interesse cultural, a descrição de tudo quanto ia descobrindo. No início, estes textos, que fascinaram a Europa, foram copiados à mão e se espalharam como pólvora. Alguns foram impressos em seguida. são curiosas as recriminações que Xavier faz ao rei Juan III de Portugal, "o piedoso", seu amigo e, de certo modo, patrocinador da missão, sobre a corrupção de alguns capitíes. Ou sobre a forma de vida desregrada de muitos portugueses da colônia. Seus parágrafos mais emocionantes são aqueles que ele dedica a seus companheiros de Roma e Lisboa.
IHU On-Line - Como foi sua vida apostólica no Oriente? E como aconteceu o processo de evangelização conduzido por Xavier no JaPão?
Pedro Lamet - Ele vivia e vestia-se muito pobremente, dormia e comia pouco, exceto quando compartilhava com os demais. Seus preferidos eram as crianças, os pobres, os doentes e leprosos. Chamava as pessoas à catequese pelas ruas, com um sino, e compunha canções para memorizar o catecismo. Traduziu essas canções para várias línguas, inclusive ao japonês, com enorme esforço. Passava as noites em oração. í€s vezes, perdia a consciência de si enquanto caminhava em meditação, inclusive com os pés ensangüentados. Ele evoluiu em suas estratégias entre índia e JaPão. Sofreu crises em Santo Tomé e Malaca, desesperado pela atitude de alguns capitíes. E no JaPão fracassou no início, quando o enganavam e cuspiam nele. No entanto, mudou de método e até a forma de vestir-se, adaptando-se à forma de pensar dos japoneses. Tinha obsessão por alcançar a China, pois os japoneses lhe tinham dito que a sabedoria vinha daquele continente. No entanto, morreu nas suas portas, sem poder realizar este último sonho.
IHU On-Line - Qual a mensagem de fé e confiança em Deus mais marcante de Francisco Xavier?
Pedro Lamet - Sua confiança deixou raízes profundas ao ser posta à prova na mais completa solidío frente ao mal. Deus foi se revelando a ele nas adversidades. Em Xavier se revela a consciência da confiança em Deus para a completa purificação antes da morte e o triunfo definitivo: o mistério da Páscoa.
IHU On-Line - O que faz de Xavier um verdadeiro santo? Que exemplos de milagres o senhor pode citar?
Pedro Lamet - não é raro que homens providos de uma grande força interior tenham exercido o poder de cura. O que é incontestável é que Xavier alcançou, em seu tempo, sua fama de santo, não só por suas grandes virtudes, mas por certos poderes que eu acredito que não se analisaram suficientemente. Por exemplo, o de vidência, provado por centenas de testemunhas: conhecer o futuro de pessoas e coisas, o momento em que iriam falecer ou se uma nau iria ou não sofrer um naufrágio. Outro ponto era a força de sua oração para acalmar tempestades - famoso milagre do caranguejo -, e a capacidade de conhecer o pensamento de seus interlocutores. Seu grande biógrafo, Georg Schurhammer, pouco suspeito em sua germânica minuciosidade de falta de rigor, recolheu centenas de provas a este respeito, mas o melhor milagre é o de sua fé, sua confiança e sua entrega total. Todo o mundo o considerava santo antes de sua morte. Isso não quer dizer que não tinha defeitos. Como provincial foi duro, talvez porque vivia muito isolado de seus companheiros. Era muito simpático, o que não significa que não teve reações de raiva, como quando repreendeu a pederastia de alguns monges budistas.
IHU On-Line - Por que o senhor acha que a maioria das pessoas que comparecem à festa de são Francisco Xavier é de não-cristíos?
Pedro Lamet - Em Goa, compareciam mais de 200.000 pessoas em sua festa. A razío é que o consideram um patrimônio cultural seu, um santo amigo. No JaPão, as crianças sabem quem é são Francisco Xavier. O estudam em seus livros de textos. Na Espanha, lamentavelmente, as novas gerações ignoram quem é ele, em parte pela ignorância religiosa atual. No mundo, ele é mais popular que Inácio de Loyola. Talvez pelas características de grande viajante e navegante, por sua aventura missioneira. Em razío do seu V Centenário, o governo da comunidade autônoma de Navarra fez um grande esforço para torná-lo conhecido.
IHU On-Line - Francisco Xavier é patrono universal das missões e da juventude. O que ele teria a dizer sobre isso nos dias de hoje?
Pedro Lamet - A juventude de todos os tempos necessita ideais, precisa embarcar-se em aventuras generosas a serviço dos demais. Sem dúvida, a missão mudou. Hoje é preciso começar pela justiça e o compromisso social, mas tampouco basta para preencher completamente esta ânsia de ideais um compromisso temporal em uma ONG. É verdade que o caminho de Xavier não é para as maiorias, porém Deus segue chamando pessoas a dar tudo o que têm. Em alguns aspectos formais do século XVI, Xavier pode parecer distante, mas o fundo de sua peripécia espiritual e humana segue vigente: o seguimento de Jesus Cristo, a transmissão da boa notícia, o serviço aos pequenos, a total confiança em Deus, o magis inaciano, o diálogo cultural, a globalização a partir do amor cristío. Em uma palavra, o atrativo da missão.
IHU On-Line - A frase "De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder sua alma?" ainda cabe na sociedade contemporânea?
Pedro Lamet - Hoje os exegetas traduzem "alma" por "vida". Converter-se não é destruir-se, mas salvar-se, encontrar a plena realização, ser nós mesmos em profundidade. Isso requer renúncias, passar pela cruz, mas no fundo se traduz na autêntica auto-estima, renunciar ao "pequeno eu", em favor do "grande eu". Hoje percebemos mais do que nunca que a sociedade materialista do consumo neoliberal não preenche o coração. É preciso buscar outros caminhos que passam a apontar para o centro do homem, que é onde está sua verdade. Como dizia Jesus: "O reino dos céus está dentro de vocês". A frase hoje seria: "De que serve ao homem ganhar todo o mundo, se ele se perde a si mesmo?".
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